Possíveis caminhos para estabelecer um limiar de disposição a pagar: considerações adicionais

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A temática definição de limiares de disposição a pagar segue bastante em evidência na literatura. Nos últimos meses, realizamos duas postagens, na primeira  revisando possíveis caminhos para estabelecer um limiar de disposição a pagar por tecnologias no Brasil, baseando-se em experiências internacionais, e a na segunda apresentando um artigo internacional que apontou que já existe um limiar no Brasil, ainda que não explícito (isto é, sem um reconhecimento oficial por agências reguladoras), na faixa sugerida pela OMS de 1 a 3x o PIB per capita. Retomamos o assunto novamente hoje tendo em vista que houve nova publicação na literatura, agora na Value in Health, de artigo que revisou sistematicamente a literatura sobre o assunto, tendo encontrado 38 estudos primários onde foi tentado definir o limiar de disposição a pagar em alguns países.  O objetivo da postagem de hoje é revisar os achados deste artigo, contraponto com algumas colocações já realizadas nas nossas postagens anteriores.

Primeiramente, os autores divide as possíveis abordagens na determinação do limiar em dois grandes domínios: o lado da oferta e o lado da demanda. No lado da oferta (supply-side) estão as abordagens realizadas a partir do sistema de saúde; já no lado da demanda estariam as metodologias que levam em conta a ótica dos pacientes e da sociedade.

Sob a ótica da oferta, os autores citam as duas abordagens que apresentamos no nosso post anterior: embasamento em decisões anteriores sobre incorporação e avaliação da produtividade do sistema – aqui referido como resultado de dispêndios (effect of expenditure). Sobre o embasamento em decisões anteriores, os quatro artigos localizados na revisão sistemática não mostraram resultados muito animadores: em apenas um dos estudos (conduzidos na Austrália) pareceu haver alguma consistência de forma a permitir estimar o limiar implícito que vinha sendo usado. Nos outros três estudos, os resultados foram muito díspares, de forma que os autores não acharam adequado, nestes casos, inferir o limiar a partir de decisões pregressas. Os autores da revisão, por outro lado, fazem um comentário interessante sobre este fato: eventualmente, as decisões anteriores não foram necessariamente adequadas, de forma que novas decisões podem seguir outros princípios. Ademais, levando-se em conta o conceito de eficiência do sistema, é possível que a mesma varie ao longo do tempo (tanto para mais ou para menos), e então o limiar poderia – ou melhor, deveria – ser um valor dinâmico, o que justificaria oscilações ao longo do tempo e ausência de consistência olhando-se as decisões pregressas.

Já na revisão da produtividade do sistema, os autores localizaram o trabalho de Klaxton que já citamos em nosso post anterior, e outros quatro trabalhos . Em dois deles, a abordagem é de séries temporais, ou seja, ao longo do tempo, foi visto o quanto foram sendo elevados os gastos com saúde, contrapondo isto ao aumento de expectativa de vida – o que os autores inferiram que se devia justamente ao maior investimento em saúde. Nos outros dois trabalhos, a abordagem foi a mesma de Klaxton, onde foram vistos diferenças regionais de gastos e as expectativas de vida (doença-específicas) nessas localidades, tentando também correlacionar ambas as variáveis. Em ambas as abordagens, os autores ressaltam que podem haver outras variáveis causando as diferenças nas expectativas de vida, o que é uma limitação importante.

Sob a ótica da demanda, os autores localizaram mais frequentemente (n=26) trabalhos de pesquisas com a população (surveys), com questionário para tentar estimar o quanto, em termos financeiros, as pessoas valoravam um ano de vida (ou o mesmo ajustado para qualidade). Os instrumentos usados foram os mais variados, incluindo time trade-off, standard gamble, escala análogo-visual, derivações do EQ-5D e algumas outras metodologias. Além da variabilidade de instrumentos, também houve variabilidade de população estudada (pacientes com condições específicas versus população geral), de método de combinação (agregada versus desagregada) e perspectiva (individual, sociedade, membro da família). Os demais trabalhos na ótica da demanda tentaram mensurar o valor estatístico de vida (value of a statistical life – VSL), comumente calculado a partir de abordagens relacionadas à produtividade (capital humano).

O que mais chama a atenção nesta revisão sistemática é a enorme variabilidade nos resultados encontrados. Tomemos apenas o Reino Unido como exemplo, um dos poucos países no mundo onde existe um limiar (na verdade uma faixa de limiares) oficialmente reconhecidas pelas agências reguladoras. Nos surveys, foram encontrados valores oscilando entre £ 500 e £ 38.000; nas estimativas de VSL, as cifras variaram entre £ 34.000 e £102.000; nos trabalhos de medida de eficiência do sistema, a gama foi de £ 11.000 a £ 47.000. Finalmente, nos estudos sobre decisões prévias, não foi possível determinar o limiar. 

Ainda que pudesse se antecipar uma conclusão pessimista no artigo, tendo em vista a grande variabilidade entre estimativas e ausência de padrão ouro (isto é, não existe consenso sobre qual a melhor abordagem), os autores consideram que todos os métodos tem potencialmente espaço. Em momentos onde a decisão será feita sem incremento de orçamento, a mensuração da eficiência do sistema seria a abordagem indicada, pois a incorporação de tecnologia menos eficiente que a média do sistema levaria a perda de saúde pela população como um todo. Em momentos de incremento no orçamento, talvez a melhor abordagem seja a de pesquisa de opinião com a população, que em última instância é a beneficiária deste aumento de investimento em saúde. Já a revisão de decisões prévias é interessante, pois pode ajudar justamente a entender a eficiência do sistema; a ausência de linearidade nas decisões passadas não é necessariamente algo que invalide estes estudos.

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